Sem ela, não sentiríamos o sabor da comida nem
conversaríamos com os amigos. E saiba que esse órgão ainda tem muito a dizer
sobre a nossa saúde
A língua vive nos extremos. Só nos lembramos dela na
dor ou no prazer. Quanta aflição quando a mordemos sem querer. Quanta
felicidade em um beijo apimentado. Na maior parte da vida, porém, esse músculo
(sim, músculo!) exerce um papel tão discreto quanto fundamental: atua na quebra
e digestão dos alimentos, na coordenação da fala e também serve como espelho do
resto do organismo. Pode delatar situações mais triviais como uma febre ou
sinalizar até mesmo quadros sérios como anemia, gastrite e diabete.
“Não é apenas sabedoria popular dizer que a língua
traz um reflexo do que ocorre no corpo”, afirma o dentista Cassius Torres,
presidente da Sociedade Brasileira de Estomatologia e Patologia Oral (Sobep).
Estomatologia é uma especialidade da odontologia dedicada a investigar tudo o que
diz respeito aos tecidos da boca – caiu na pegadinha se pensou que tinha a ver
com estômago. Ocorre que a aparência da língua não deveria ser examinada só na
cadeira do dentista. Embora a ciência ainda não saiba explicar em minúcias, uma
série de problemas sistêmicos se manifesta por alterações nessa estrutura. É o
caso da anemia, que pode ser fruto de uma deficiência de ferro ou vitamina B12.
“Um dos primeiros sinais é a atrofia da língua. Ela
fica lisa, parece perder as papilas”, descreve a estomatologista Fernanda
Salum, professora da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul.
Diante de uma anemia, também é comum o indivíduo se queixar de ardência e
sensação de queimação na hora de comer. “É uma condição que se reflete
diretamente no órgão, deixando-o mais sensível”, completa a especialista.
Segundo Torres, essa ardência aparentemente do nada – você não está degustando
um prato picante – também pode ser uma pista de que o diabete está à espreita.
O descontrole da glicose, diga-se, ainda é capaz de gerar formigamento por ali,
boca seca, além de danos à gengiva.
É por tudo isso e mais um pouco que a Sobep e seus
membros recomendam o autoexame da língua. “Buscamos ensinar as pessoas a ficar
atentas aos sinais estranhos e conhecer minimamente a anatomia do órgão para
identificar as alterações e, se for o caso, procurar um profissional”, orienta
o presidente da entidade. Sim, tem que mostrar a língua para o espelho. Até
porque existem doenças que afetam ela mesma.
De acordo com Fernanda, que também atua no Hospital
São Lucas, em Porto Alegre, é ali que ocorre a maioria dos casos de câncer de
boca. Os tumores surgem principalmente nas bordas, com a aparência de pequenas
lesões. São registrados mais de 15 mil novos episódios anualmente no Brasil. O
drama é que, se flagrada em fase tardia, a enfermidade cobra tratamentos
mutiladores e pode se espalhar, causando inúmeras complicações. Diagnóstico
precoce, portanto, faz a diferença – espalhe por aí.
Com a língua, não é preconceito julgar pela
aparência. O padrão considerado normal e saudável diz que sua coloração deve
ser rosada e a textura, mais homogênea. Em um estudo feito com 896 moradores da
cidade de Okinawa, no Japão, os pesquisadores observaram uma relação direta
entre a cor da língua e a gastrite – no caso, o problema estava ligado a tons
muito vermelhos ou amarelados. Eles acreditam inclusive que uma espiada no
músculo durante a consulta médica seja uma estratégia eficiente e não invasiva
para rastrear inflamações nas bandas do estômago.
O aparecimento de manchas e placas brancas é outro
sinal de alerta. Pode ser indício de uma infecção fúngica, como a candidíase,
ou de uma deficiência na imunidade, situação mais comum entre pessoas com HIV. Acontece
que, muitas vezes, essas características significam apenas uma deposição de
saburra, camada de resíduos gerados pelas próprias papilas e restos de
alimentos – nada que uma boa higiene bucal não remova.
Por isso, se há suspeita diante de uma alteração
persistente ou recorrente, só um profissional estará apto a tirar a dúvida.
“Sozinho, o indivíduo não vai conseguir classificar uma lesão como normal ou
perigosa”, reforça a otorrinolaringologista Cleonice Hitome, da Universidade
Federal de São Paulo. De acordo com ela, um tabagista pode apresentar mais de
35 manifestações diferentes na boca e é difícil distinguir o que é passageiro
do que é, de fato, preocupante.
Assim como acusa se alguém fuma, a língua pode
revelar os hábitos alimentares e de higiene do cidadão. O projeto “Mostre a
Língua”, do Centro para Regulação Genômica da Espanha, já identificou as
bactérias mais presentes na boca das crianças e, agora, está cruzando os dados
com informações sobre a rotina delas. A análise vai permitir descobrir quais
micro-organismos habitantes da língua e suas redondezas estão mais presentes
entre quem consome refris e salgadinhos, por exemplo, e como esse comportamento
repercute na saúde local e sistêmica.
Apesar de virar atração científica mais
recentemente, o papel da língua como espelho do corpo é conhecido da medicina
chinesa há milênios. Essa escola ensina que o paciente deve botar a língua pra
fora de maneira relaxada para o especialista avaliar tamanho, cor, rachaduras,
lesões e a saburra. Os chineses enxergam em sua superfície uma projeção de
outras áreas do organismo – a parte da frente reflete coração e pulmões; o
centro, o sistema digestivo; e o fundão, os genitais. “Alterações nessas
regiões indicam, assim, disfunções nos respectivos órgãos”, explica Marco
Antonio Hélio da Silva, professor da pós-graduação em medicina chinesa da
Universidade Federal Fluminense. O corpo tem várias formas de expressar suas
aflições. E a língua tem muito a dizer.
Faxina lingual
Escovar os dentes e passar o fio dental é
praticamente um mantra entre os dentistas. Mas essa não é a única regra
obrigatória. A língua também precisa de uma boa higiene diariamente. Seja com a
própria escova, seja com um limpador (ou raspador) – acessório vendido em
farmácias -, a faxina elimina resíduos que ficam na língua e que, entre outras
coisas, causam mau hálito.
Fonte: http://saude.abril.com.br/medicina/o-que-a-lingua-pode-revelar-sobre-sua-saude/
- Por Paula Sperb e Alexandre de Santi - Ilustração: Fido Nesti