Levantamento sobre a doença entre os brasileiros
aponta os desafios para prevenir e remediar esse problema tão ligado ao estilo
de vida
O que é insuficiência cardíaca
Após décadas de trabalho estressante, no limite da
capacidade, o coração pediu arrego. Ele fez tudo o que podia para garantir que
o sangue fosse distribuído pelo organismo: acelerou as batidas, ficou mais
forte, ganhou até volume… Mas nada trouxe resultado. Todas essas mudanças de
padrão, pelo contrário, só pioraram as coisas. Até que o músculo cardíaco já
não pena sozinho. O corpo inteiro padece. Na prática, isso significa que o
fôlego acaba em uma caminhada mais intensa até a esquina. Literalmente.
Essa novela, que pode terminar no colapso do órgão,
se desenrola todos os dias no peito de 6 milhões de brasileiros. Eles sofrem de
insuficiência cardíaca. “Nessa situação, o coração não consegue bombear o
sangue direito”, resume a cardiologista Sabrina Bernardez Pereira, do Hospital
do Coração, na capital paulista.
Apesar de tão séria e comum, não existia um balanço
das características desse problema em nosso país. Para suprir a lacuna, a
Sociedade Brasileira de Cardiologia (SBC) fez um levantamento focado na
insuficiência cardíaca. Os médicos acompanharam 1 263 pacientes com a
enfermidade espalhados por 51 hospitais das cinco regiões do território. O
objetivo era conferir como andam o diagnóstico, o tratamento e a evolução do
quadro ao longo dos anos — e quais condições e hábitos estão associados ao seu
aparecimento.
O cenário que os especialistas desvendaram não é
nada animador. “O número de indivíduos que morrem de insuficiência quando
chegam ao hospital é duas vezes mais alto do que nos Estados Unidos e três
vezes mais elevado em relação à Europa”, calcula o cardiologista Fernando
Bacal, diretor da Unidade Clínica de Transplante Cardíaco do Instituto do
Coração (InCor), em São Paulo, e um dos autores do estudo.
Como se não bastasse, quase 30% dos doentes que
tiveram alta voltam a ser internados após alguns meses, um reflexo da falha no
acesso a medicamentos e na escassez de informações sobre como se cuidar. “O
paciente só chega ao médico quando o problema já está avançado e difícil de
tratar”, lamenta Bacal. Já está ruim? Pois pode piorar: com o envelhecimento da
população, nos próximos 15 anos a turma dos corações cansados ganhará a
companhia de 2 milhões de brasileiros — afinal, a idade é um fator de risco
para a complicação.
O que está por trás da insuficiência cardíaca
Apesar de insidiosa, a insuficiência cardíaca tem um
ponto vulnerável: sua evolução é lenta. Ela demora décadas para alcançar o
estágio gravíssimo. Portanto, o sonho dos cardiologistas é flagrá-la em uma
fase em que o órgão ainda não teve avarias e cortar os elementos de agressão. E
é aí que entra o estilo de vida. Hoje a principal condição que patrocina a
insuficiência é a pressão alta. O levantamento acusa que ela afeta sete em cada
dez pessoas com o coração doente.
Na hipertensão, as artérias ficam mais estreitas, o
que dificulta a passagem de sangue. “Para vencer a resistência, o coração
começa a bater com força e se sobrecarrega”, ensina o cardiologista Denilson
Albuquerque, coordenador do trabalho da SBC e professor da Universidade do
Estado do Rio de Janeiro. Se a pressão não for controlada, o órgão trabalha
feito louco por anos e anos. E o que acontece com ele? Pense numa academia de
ginástica: se você exigir muito dos seus músculos, eles vão crescer. O mesmo
vale para o coração. Ele se avoluma, o que prejudica o baticum e a função de ejetar
o sangue para a circulação.
Outras duas condições que botam fichas a favor da
insuficiência cardíaca são o colesterol alto e o diabetes, comuns em 35% dos
participantes da pesquisa. Mas seu papel nesse desfecho é mais indireto. “O
excesso de gordura e glicose nos vasos propicia infartos”, aponta Sabrina.
Quando se escapa ao ataque cardíaco, o coração fica com uma cicatriz, o que
limita os movimentos de contração e relaxamento. Com o tempo, ele tende a
entrar naquele estado de fadiga. Dê uma olhada no infográfico abaixo:
A investigação da SBC também foi capaz de mostrar as
particularidades do problema em terras brasileiras. O melhor exemplo disso é o
impacto da doença de Chagas no desenvolvimento da insuficiência cardíaca. Enquanto
nos Estados Unidos e na Europa praticamente não há relação entre as duas
condições, no Brasil 10% dos corações cansados são consequência de uma picada
do inseto barbeiro, que transmite o protozoário Trypanosoma cruzi.
O parasita pode se instalar no músculo cardíaco e
viver lá durante anos sem dar nenhum sinal. “Depois de algumas décadas, ele dá
início a um processo de inflamação ali, que resulta na dilatação do órgão”,
aponta o médico Ricardo Pavanello, diretor de pesquisa da Sociedade de Cardiologia
do Estado de São Paulo. É por isso que a gente ouve falar que o Chagas deixa o
coração inchado. A miocardite, nome científico desse quadro, é bem comum no
Centro-Oeste e no Sudeste.
Também chama atenção no levantamento o elo entre
outro distúrbio, este bem mais comum nas cidades grandes, com a fadiga no
peito: a apneia do sono. Marcada por roncos e interrupções no fluxo
respiratório durante o repouso, ela incide em até 60% dos portadores de
insuficiência. “Sabemos que a falta de oxigênio provoca a liberação de
substâncias inflamatórias que afetam o coração”, diz o cardiologista Dirceu
Rodrigues Almeida, da Universidade Federal de São Paulo. Considere que essa
descarga de estresse é despejada no peito noite por noite, anos a fio. Uma hora
isso rende algum chabu.
Já a depressão aparece em 13% dos que tinham
insuficiência. Por ora, os médicos não sabem dizer se ela é causa ou
consequência da pane cardíaca. O fato é que não conseguir realizar tarefas
cotidianas, que exijam um pouquinho de esforço, é uma das características mais
angustiantes da doença. “Imagine pessoas que caminhavam por quilômetros e agora
sofrem para ir ao banheiro”, relata Sabrina. O impacto na autoestima e na
rotina requer muitas vezes o apoio de um psicólogo, a fim de precaver que a
tristeza conquiste terreno demais.
Uma questão de atitude
A regra número 1 para tratar (ou prevenir) a
insuficiência cardíaca é mudar o estilo de vida. Ao adotar hábitos saudáveis
nos primeiros estágios, dá para evitar que a enfermidade ganhe traços
dramáticos. “É essencial emagrecer e restringir o consumo de gordura e açúcar”,
exemplifica Almeida. Isso vai ajudar a evitar que o colesterol alto e o
diabetes, dois gatilhos para o colapso cardíaco, se instalem de vez.
Boa parte das pessoas também tem de abandonar o
álcool, pois ele pode lesar as células do coração. Os médicos liberam uma ou
duas doses apenas em ocasiões especiais. “Também é preciso maneirar no sal e na
ingestão de água e outras bebidas”, completa o cardiologista Alexandre Soeiro,
supervisor da Unidade de Emergência do InCor. É que essa dupla é capaz de
piorar a retenção de líquidos, o que acaba em inchaço nas pernas e na barriga —
um traço típico da insuficiência.
Enquanto algumas práticas estão banidas, outras são
incentivadas. Por muito tempo, o exercício físico foi proibido para quem tinha
o coração fatigado. Se a pessoa mal caminha sem perder o fôlego, que dirá se
aderir a um treino de ginástica… Mas esse pensamento caiu por terra. Hoje,
praticar um esporte é um recurso valioso (e obrigatório) no controle da doença.
“Exercícios relaxam os vasos, oxigenam os músculos e favorecem a capacidade de
bombeamento do órgão”, enumera Almeida. Sem contar que dão aquele ânimo.
As sessões, que envolvem caminhada e musculação,
devem ser feitas em clínicas de reabilitação especializadas, acompanhadas de um
profissional de educação física. Tudo para que não se ultrapassem os limites
seguros. Normalmente, a carga de treinamento é leve e a intensidade sobe de
acordo com a melhora. Hidroterapia, ioga e tai chi são outras modalidades
prescritas nesses casos.
Apesar de ajustes na rotina serem tão importantes
para pessoas com insuficiência cardíaca, a pesquisa da SBC constatou que uma
das principais falhas está na comunicação entre médico e paciente. Apenas 16%
dos portadores foram informados sobre o papel da atividade física, enquanto só
34% receberam orientações de mudar a dieta, com a redução no consumo de sódio e
de gordura.
“A ausência desse diálogo culmina no abandono das
mudanças no estilo de vida e na falta de adesão à medicação”, analisa Bacal.
Para reverter essas estatísticas, os experts apostam em mais tempo de consulta
e nas equipes multiprofissionais, atentas a todos os detalhes do paciente.
Soluções na farmácia
Só que nem sempre basta mexer na alimentação e suar
a camisa. Se a insuficiência progride e já há danos, medicamentos são mais que
necessários. Os primeiros são os diuréticos, que incentivam a eliminação de
líquidos pela urina e reduzem os inchaços pelo corpo.
Uma segunda classe de drogas tem ação
vasodilatadora, ou seja, amplia o calibre de veias e artérias para facilitar a
passagem do sangue e, assim, aliviar o trabalho do músculo cardíaco. Em
terceiro lugar vêm os chamados betabloqueadores, que brecam a ação da
adrenalina, hormônio que intensifica o ritmo cardíaco.
Por último, e não menos importante, estão os
inibidores da enzima conversora de angiotensina, ou simplesmente IECA. Sua
missão é impedir que moléculas estreitem os tubos sanguíneos. Quais o indivíduo
terá de tomar ou quais as combinações ideais? Só o médico, após avaliar direitinho,
poderá dizer.
Mas (e sempre tem um “mas”) existem pessoas que não
obtêm bons resultados com esse quarteto farmacológico. Aí entram alternativas,
como a droga ivabradina, que diminui a cadência dos batimentos. E há novidades
promissoras por vir. Talvez a mais esperada seja um comprimido ainda em es-tudo
da farmacêutica suíça Novartis.
Seu nome provisório é LCZ696 e seu potencial
terapêutico foi apresentado e debatido no congresso da Associação Americana do
Coração de 2014. Os pesquisadores compararam sua eficácia com o principal
representante da classe dos IECA em 8 mil voluntários. Em relação ao
medicamento já no mercado, o produto da Novartis reduziu em 20% as taxas de
mortalidade e hospitalização, bem como o tempo de UTI e a necessidade de visitas
ao pronto-socorro. “Achados tão expressivos vão antecipar a aprovação da droga
nos Estados Unidos para o segundo semestre deste ano”, conta o médico Felix
Ramires, coordenador do Programa de Insuficiência Cardíaca do Hospital do
Coração. A expectativa é que ele ganhe o ok das agências regulatórias
brasileiras em 2017.
Mas o que essa droga tão aguardada tem de especial?
Logo de cara, ela reduz os níveis de angiotensina, elemento que, em excesso,
faz os vasos sanguíneos ficarem no sufoco. “Além disso, estimula a liberação de
uma proteína que protege especialmente o coração”, destaca Ramires. Essa dupla
ação, inédita, é o que confere ao remédio o status de um dos maiores avanços na
cardiologia desde os anos 1980.
Nos casos avançados da insuficiência, em que
comprimidos não dão mais conta do recado, o jeito é recorrer a cirurgias de
revascularização, que desobstruem as artérias, marca-passos para acertar as
batidas e até mesmo ao coração artificial, um dispositivo que substitui a peça
original. “Também há a opção do transplante cardíaco, mas esbarramos no número
reduzido de doadores no país”, lembra Fernando Bacal. Em 2014, foram 311
operações dessa natureza por aqui, a maioria esmagadora para sanar a
insuficiência cardíaca. Muito antes de chegar a esse ponto, porém, você já sabe
que é possível adotar atitudes preventivas, investindo em um estilo de vida
saudável. É o roteiro mais seguro para evitar que a máquina que abrigamos no
peito dê sinal de cansaço.
Para deixar o coração tinindo
O flagra precoce e a terapia adequada permitem que o
músculo continue trabalhando direito
O diagnóstico
A detecção da insuficiência cardíaca se dá no
consultório. Se o indivíduo está com hipertensão, diabetes, falta de ar e
pernas inchadas, há uma boa probabilidade de ter a doença. “Aí pedimos exames
como o ecocardiograma para confirmar a suspeita”, explica o cardiologista
Marcelo Sobral, do Hospital Beneficência Portuguesa, na capital paulista.
O tratamento
Além de cuidados como uma alimentação regrada e a
prática de atividade física orientada de perto, o controle da insuficiência
cardíaca depende de uma série de medicamentos. E um novo fármaco, previsto para
2017, deve revolucionar a luta contra a doença.
Estatísticas alarmantes
Os números da insuficiência cardíaca em nosso país
6 milhões de pessoas têm insuficiência cardíaca no
Brasil, segundo as últimas projeções
10% dos brasileiros acima de 80 anos possuem o
problema — entre os 40 e os 59 anos, a incidência cai para 1%
70% dos indivíduos com a doença também convivem com
a hipertensão
A previsão é um aumento de 40% nos casos de
insuficiência cardíaca no país até 2030
A média de idade dos participantes do levantamento
brasileiro foi de 64 anos
34% deles foram orientados sobre o papel de uma boa
alimentação, sem abuso de sal e de líquidos
16% dos pacientes recebiam conselhos para fazer uma
atividade física
67% daqueles que têm insuficiência cardíaca
declararam se lembrar de recomendações sobre o jeito certo de usar os remédios
29% das complicações da doença acontecem justamente
por causa da baixa adesão ao tratamento e de equívocos na hora de tomar os
remédios
A média de sobrevivência após o diagnóstico da
insuficiência cardíaca no Brasil é de 5 anos
Fonte: https://saude.abril.com.br/medicina/insuficiencia-cardiaca-quando-a-maquina-quer-pifar/
- Por André Biernath - Ilustração: Marcus Penna/SAÚDE é Vital