Em vídeo nas redes, suposto químico diz que esse
produto chega a favorecer vírus e bactérias — e que o vinagre seria útil. Mas
isso é mentira
Em um vídeo que corre pelo WhatsApp, o “químico
autodidata” Jorge Gustavo alega que passar álcool em gel nas mãos não é eficaz
na prevenção de infecções por vírus e bactérias. Pior: ele favoreceria a
transmissão de doenças como a Covid-19, provocada pelo novo coronavírus.
Só que todas essas afirmações são falsas. “O que ele
fala é simplesmente uma sucessão de besteiras, recheada por diversos erros
técnicos e conceituais”, resume Álvaro José dos Santos Neto, farmacêutico
doutor em Química Analítica e professor do Instituto de Química de São Carlos
da Universidade de São Paulo (USP).
A disseminação do vídeo levou o Conselho Federal de
Química (CFQ) a liberar uma nota esclarecendo que o álcool em gel 70% é, sim,
eficiente para se proteger de vírus e bactérias, assim como lavar a mão com
água e sabão.
Uma dica da SAÚDE: o próprio fato de o autor se
denominar um “químico autodidata” levanta suspeitas. “O autor está sendo
denunciado ao Ministério Público, uma vez que se intitula químico sem o ser de
fato. Ele não tem nem formação nem registro em nenhum órgão competente”,
comenta Rafael Barreto Almada, presidente do Conselho Regional de Química do
Rio de Janeiro (RJ).
Essa profissão é regulamentada como a de
engenheiros, enfermeiros, psicólogos e tantas outras. Portanto, exige formação
e cadastro em uma entidade profissional, que estabelece regras para uma atuação
ética.
As discrepâncias não param por aí. Como já virou
tradição no É Verdade ou Fake News, vamos esclarecer uma a uma:
“O álcool não mata nada, não desinfeta nada, apenas
esteriliza”
O álcool em gel, feito a partir do etanol, é um
antisséptico — ou seja, tem a função de desinfetar a pele humana. Só que o
termo desinfetante geralmente se refere a produtos utilizados em superfícies
inanimadas (como uma mesa, por exemplo).
“Já a palavra ‘esterilizar’ se refere a um processo
que destrói toda forma de vida microbiana, feito em equipamentos especializados
e substâncias ainda mais potentes, com objetos como instrumentos cirúrgicos”,
explica o microbiologista Jorge Sampaio, do Fleury Medicina e Saúde.
A ação desinfetante do álcool é bem estabelecida.
“Ele atua na parede celular do agente infeccioso, desestruturando as proteínas
ou lipídios que a revestem”, detalha Almada. Tal processo consegue eliminar
mais de 99% dos agentes infecciosos. E o novo coronavírus (chamado de
SARS-CoV-2 pelos experts) não é exceção.
“A literatura científica conta com vários estudos,
inclusive revisões sistemáticas [que reúnem muitas pesquisas], atestando esse
fato”, comenta Santos-Neto. Não à toa, a substância é usada há séculos como
antisséptico em hospitais.
“Esse álcool
gel tem mais de 70% de água e 20% de um espessante”
O 70% do rótulo (ou 70°, unidade de medida
geralmente usada para a versão líquida) significa que existem 70 partes de
álcool para 100 do produto final. Ou seja, em cada 100ml de formulação em gel,
70ml são puro álcool.
Os outros 30% do frasco são feitos de água e de um
espessante. A combinação confere a consistência de gel, o que reduz o potencial
incendiário do álcool e prolonga seu tempo de ação nas superfícies. Algumas
marcas incluem ainda outros ingredientes para dar aroma e cor.
De qualquer jeito, formulações com mais de 50% de
álcool já trazem algum efeito antisséptico discreto, embora o recomendado seja
investir nas que contêm entre 70 e 85%. Produtos ainda mais concentrados
eliminam os germes, porém são caros, agressivos à pele, altamente inflamáveis e
com evaporação mais rápida.
“O agente gelatinoso usado como espessante pode
carregar bactérias”
No vídeo, o “químico autodidata” Jorge Gustavo diz
que um dos principais problemas reside no espessante. Essa substância serviria
de veículo para bactérias, propagando doenças ao invés de preveni-las.
“Um gel puro, sem o devido cuidado, realmente pode
servir como meio de cultura para alguns micro-organismos”, reconhece
Santos-Neto. “Mas o álcool inibe esse processo”, arremata. Portanto, não há com
o que se preocupar com o produto vendido nas farmácias.
“Usar vinagre é melhor”
O ácido acético, princípio ativo do vinagre, tem
mesmo ação frente a bactérias. “Mas no vinagre doméstico essa concentração é
baixa, e o produto pode causar irritação nas mãos”, explica Sampaio. “Fora
isso, não há evidências de que o ácido acético seja eficaz contra vírus”,
complementa Ana Gales, infectologista da Universidade Federal de São Paulo.
Segundo o autor do vídeo, o vinagre só perderia em
popularidade por ser “extremamente barato”. Assim, a indústria não lucraria o
suficiente com ele.
Acontece que dá para adotar estratégias para
economizar no álcool gel. “Você pode comprar no atacado embalagens maiores, de
um litro, e ir reabastecendo potinhos menores. Isso barateia o custo”, ensina
Almada.
De onde vem essa história?
A origem pode estar em um estudo divulgado em 2019
pelo periódico mSphere, da Associação Americana de Microbiologia. Nele,
pesquisadores japoneses questionam as recomendações atuais sobre o uso de
soluções à base de álcool para eliminar o vírus influenza, causador da gripe.
Só que esse trabalho — que vai na contramão de
vários outros — foi prontamente refutado pela comunidade científica.
Pesquisadores publicaram uma resposta no Journal of Hospital Infection,
apontando falhas no formato do estudo (como o fato de usarem uma quantidade
ínfima de álcool em gel por poucos segundos) e considerando o achado
irrelevante.
O grupo que desbancou esse estudo foi liderado pelo
suíço Didier Pittet, um dos maiores especialistas do mundo em doenças
infecciosas. Ele é diretor do Programa de Controle de Infecções e do Centro
Colaborador de Segurança do Paciente da Organização Mundial de Saúde (OMS).
A ação do etanol a 70% contra os vírus da mesma
família do novo coronavírus é demonstrada em experimentos há pelo menos 15
anos. E um novo artigo alemão, publicado no periódico Infection Prevention in
Practice, sugere que o mesmo pode ser verdade para essa variante em circulação.
Hoje, o álcool em gel é recomendado para minimizar a
disseminação do coronavírus e outros pela OMS, pelo Centro Europeu de Prevenção
de Doenças, pelo Ministério da Saúde e por todas as entidades sérias envolvidas
de alguma maneira no tema.
Dicas para usar o álcool em gel
Ele funciona melhor quando não há sujeiras visíveis
na pele. “Os resíduos orgânicos prejudicam sua ação”, comenta Sampaio. Mais um
motivo para lavar as mãos com frequência.
Também é importante não encostar os dedos no bocal,
verificar a validade do produto e checar se há um químico responsável por sua
fabricação — uma informação obrigatória no rótulo.
“Uma dica: quando o produto fica opaco, é sinal que
perdeu seu princípio ativo. Aí não será mais eficaz”, completa Ana.
Fonte: https://saude.abril.com.br/blog/e-verdade-ou-fake-news/alcool-em-gel-nao-evita-infeccao-por-novo-coronavirus-e-fake/
- Foto: Marcello Casal Jr/Agência Brasil/SAÚDE é Vital