Além de colorir, perfumar e encher os pratos de
sabor, a especiaria mais ardida e popular do planeta nos protege de doenças
cardiovasculares
No tabuleiro da baiana tem. Na cozinha mexicana
também. E até em centro de pesquisa italiano ela dá o ar de sua picância.
Estrela na culinária internacional, a pimenta protagonizou um dos mais
badalados estudos recém-publicados no universo da nutrição. Ele foi tocado no
Instituto Neurológico Mediterrâneo Neuromed, em Pozzilli, e traz mais motivos
para esquentar o cardápio do dia a dia. Depois de esmiuçar dados de mais de 22
mil pessoas por cerca de oito anos, os cientistas notaram uma associação entre
a especiaria e a proteção contra males como o infarto.
Segundo a líder do trabalho, Marialaura Bonaccio, o
consumo frequente pode reduzir o risco de morte por problema cardiovascular em
34%. Embora dois grandes estudos anteriores — um com a população chinesa e
outro realizado com americanos — já tenham apontado a relação protetora, ainda
se debate o que o alimento teria de tão especial para o coração.
Grande fã de macarrão apimentado com vegetais,
Marialaura argumenta que “mais pesquisas são necessárias para explicar o que
está por trás dos benefícios”.
Outra apreciadora, a nutricionista Marina Sallum,
expert em vegetarianismo da RG Nutri, na capital paulista, conta que a
literatura científica dá pistas vindas de experimentos em células e cobaias.
“Há indícios de que a pimenta favorece o equilíbrio dos níveis de colesterol no
sangue, a vasodilatação e o controle da pressão arterial”, diz.
A lista de benesses ao peito não ficaria por aí. “O
alimento tem ação anti-inflamatória”, destaca a nutricionista Renata Alves, do
Instituto Dante Pazzanese de Cardiologia, em São Paulo. Daí que, entre outras
coisas, resguarda o tapete celular que recobre o interior das artérias. Com
isso, elas ficam mais blindadas contra lesões e placas de gordura.
Um mix de antioxidantes torna a especiaria tão
poderosa. “Compostos bioativos, como carotenoides e polifenóis, especialmente
flavonoides, atuam em sinergia”, conta a nutricionista Gabriela Barbosa, da
Universidade Federal de Minas Gerais.
Capsaicina, o segredo ardido da pimenta
Grande parte de seus talentos, entretanto, recai
sobre um ingrediente exclusivo desses vegetais: a capsaicina. A substância é,
inclusive, a responsável pelo ardor. Não à toa o nome de batismo, Capsicium,
serve para o gênero que contempla malagueta, dedo-de-moça, jalapeño, além das
pimentas-de-cheiro e dos pimentões.
Na natureza, o composto já exerce seu papel
defensivo. A ardência afasta predadores dos frutos, caso de alguns mamíferos.
As aves, por sua vez, são imunes.
“O colorido das pimentas Capsicum silvestres atrai
pássaros que, ao comerem os frutos inteiros, contribuem para a dispersão das
sementes e a preservação do vegetal”, explica a engenheira-agrônoma Cláudia
Ribeiro, da Embrapa Hortaliças, em Brasília. Assim como a passarinhada, o
bicho-homem se apaixonou e carregou o alimento para todos os cantos do planeta.
A verdade é que a capsaicina estimula efeitos
irritantes e prazerosos quase ao mesmo tempo. Quando entra em contato com as
mucosas da boca, do nariz e da garganta, ela desencadeia um sinal de dor.
Então, de célula em célula, a mensagem chega ao cérebro, que reage produzindo
endorfinas — substâncias relacionadas ao alívio e ao bem-estar.
A quantidade de moléculas capsaicinoides encontradas
nos frutos é bem variada. Fatores como a constituição genética da pimenteira e
até mesmo as condições de cultivo, a temperatura e a umidade durante o
crescimento dessas plantas interferem na concentração, nas sensações provocadas
e, inclusive, nos apregoados benefícios à saúde.
Portanto, se a capsaicina é o maior tesouro da
pimenta, vale parafrasear o filme estrelado por Marilyn Monroe e Tony Curtis:
quanto mais quente, melhor.
Família picante
Relatos apontam a região que inclui a bacia do Lago
Titicaca, entre Peru e Bolívia, como centro de origem das pimentas. Os frutos
do gênero Capsicum (são cerca de 30 espécies) só foram encontrados por
Cristóvão Colombo em sua segunda viagem à América, no século 15, e, a partir
daí, conquistaram o mundo.
O grupo exibe vários formatos, tamanhos, cores e
graus de picância. Entre as fortes, estão malagueta, fidalga e habanero. Já a
biquinho, a murupi e a dedo-de-moça figuram como mais suaves.
Pimentas-do-reino vêm de outra família. Inclusive,
não contêm a aclamada capsaicina. Nossa pimenta-rosa também faz parte de um clã
diferente.
O antropólogo e historiador Luís da Câmara Cascudo
(1898-1986) se desdobra em elogios ao mais pungente dos vegetais: “… a
pimentinha, companheira sem rival, transformando o peixe cozido em obra-prima,
ressaltando os valores sápidos de todas as iguarias…”.
Nada mais justo. Afinal, malagueta e companhia
oferecem uma mistura ímpar de compostos e realçam as preparações como ninguém.
Enfeitam qualquer prato. Sem contar que a pimenteira, reza a sabedoria popular,
espanta até mau-olhado.
A chef de cozinha baiana Tereza Paim, do restaurante
Casa de Tereza, em Salvador, usa desde menina. Ela apanhava os frutos frescos
plantados no quintal e amassava na hora das refeições.
Em sua cozinha, as espécies doces e aromáticas têm
grande espaço, mas há tipos ardidos também. Fica a gosto do freguês. “Alguns
têm maior resistência, outros não. Por isso, os molhos são servidos em potes
separados”, relata.
As situações que pedem moderação
Quando o assunto é pimenta, há a turma de paladar
menos sensível que pede mais e mais. Por outro lado, muitos fogem — e tem gente
que deve mesmo passar longe.
“Não é indicada para indivíduos com alterações
gastrointestinais, caso de gastrite, além de pessoas com doenças inflamatórias
no intestino e hemorroidas”, avisa a nutricionista Andréa Esquivel, do Cedig —
Centro de Medicina Avançada, em São Paulo. Não que a especiaria provoque todos
esses males: ela só desencadeia sintomas em indivíduos que já apresentam tais
distúrbios.
Para atenuar um pouco a picância, Andréa, que também
é professora de culinária, recomenda retirar as sementes e a chamada placenta,
aquela parte mais esbranquiçada. Ali se concentra a capsaicina. “O uso de luvas
durante o manuseio é fundamental para evitar irritação”, ressalta.
Outro aviso importante para quem quer apimentar a
rotina é não abusar. Excesso nunca é bem-vindo — até porque a vermelhinha vai
roubar a cena e ofuscar outros ingredientes do cardápio.