Quando uma mulher se olha por inteiro certamente ela
reconhece suas próprias qualidades
Provavelmente você já deve ter vivido a experiência
de observar seu corpo depois do banho ou numa troca de roupa diante do espelho.
Nessa hora que você olha com mais atenção para a sua silhueta, suas
características físicas e sinais, qual é a sua sensação? Você se sente
satisfeita com o que vê ou se depara com um monte de defeitos?
Infelizmente grande parte das mulheres que estão
lendo essa matéria devem ter se identificado com a segunda opção. Calma, você
não está sozinha. O Relatório Global de Beleza e Confiança da Dove, feito em
2016, entrevistou cerca de 10.500 mulheres de 13 países. Dessas, apenas 4% se
consideraram bonitas.
O estudo também mostrou que mais da metade das
mulheres acreditam que são elas mesmas que fazem as maiores críticas à própria
beleza. E 80% das entrevistadas concordam que toda mulher tem qualidades que a
tornam bonita, mas têm dificuldade de enxergar a própria beleza.
A pesquisa mostra um número expressivo de mulheres
descontentes com a própria aparência e, se formos olhar para as nossas vidas,
podemos perceber que é muito comum que questões relacionadas à estética estejam
presentes na vidas das mulheres. Mas você já se perguntou quando essas
imposições estéticas começaram?
A resposta para a primeira pergunta é: elas sempre
existiram. Para se ter uma ideia, já no período da pré-história, a escultura
"Mulher de Willendorf" mostrava o corpo da mulher com formas robustas
e arredondadas. Esse era o padrão de beleza da época, ele era valorizado porque
passava a ideia de fertilidade. Como esse era o maior atributo que uma mulher
podia ter, quem fosse assim era bonita.
No período da Grécia Antiga, o conceito de beleza
tinha relação com a ideia de simetria e proporção. Sendo assim, de maneira
simples, os corpos atléticos se encaixavam no padrão de beleza. O oposto disso
se deu no período do Renascimento, no qual o padrão de beleza feminino
consistia em apresentar cabelos compridos, seios fartos e curvas voluptuosas.
Dando um salto na história e indo para a segunda
década do século 20, o sinônimo de sensualidade da época era justamente um
visual mais minimalista, com cabelos curtos e curvas disfarçadas. Nas décadas
seguintes, corpos curvilíneos, sarados, esguios, magro com curvas tiveram
predominância no ideal de beleza feminino. A questão é que, por mais que o
ideal de beleza tenha mudado ao longo da história, é bem verdade que nem todos
se enquadravam nele e isso sempre trouxe consequências.
"De uma forma ou outra isso acaba afetando a
todos, sendo que nós mulheres acabamos recebendo uma cobrança muito maior em
corresponder a esse padrão. Ressaltando que esses padrões estabelecidos e
cobrados se manifestam de diferentes formas e não se limitam a imagem corporal,
mas também estão direcionados as vestimentas, comportamentos, aos modos de
vida", explica a psicóloga clínica Bruna Morgana Giraldi Barão.
É importante dizer que a partir do século XX a cada
mudança de década os padrões de beleza passaram por modificações expressivas.
Por exemplo, no livro "Moda do Século", o autor François Baudot
explica que na primeira década o ideal de corpo feminino eram as mulheres com quadris
largos e cintura fina. Em 1920, a beleza estava nos corpos mais longilíneos e
andróginos, quase sem curvas.
Logo, pode-se imaginar que uma mulher que estava
dentro do que era considerado bonito por volta de 1910, provavelmente não se
sentiria tão bem com seu corpo alguns anos para frente. E olha que nessa época
não tinha Instagram ou Facebook para escancarar as tendências estéticas a todo
momento.
Padrões não consideram a diversidade
Ao longo da história da humanidade, diferentes
fatores influenciaram a criação de padrões estéticos. Por exemplo, no período
da pré-história a figura de proporções avantajadas da ?Mulher de Willendorf?
era valorizada devido a uma relação que aquele biotipo tinha com a fertilidade.
Assim como nos anos 20 era comum que as mulheres que trabalhavam optassem pela
praticidade e, com isso, foi atribuído a elas um visual mais próximo do
masculino, com calças, camisas e casacos retos.
Além disso, a posição social, moda, mídia e até
mesmo a religião já serviram de pilar para ditar padrões estéticos. O problema
é que em nenhum ou em quase nenhum momento essa padronização levou em
consideração os corpos das mulheres. Em outras palavras, durante todo tempo
tentaram dizer às mulheres o que era ou não considerado belo, mas essa
definição não ponderou a diversidade de biotipos, contextos sociais, culturais
e gostos de cada uma. Sendo assim, como encaixar o corpo feminino em algo que
não foi instituído a partir do corpo feminino?
No livro "O Mito da Beleza", Naomi Wolf
explica que "o mito da beleza mutila o curso da vida de todas. E o que é
mais instigante, a nossa identidade deve ter como base a nossa 'beleza', de tal
forma que permaneçamos vulneráveis à aprovação externa, trazendo nosso
amor-próprio, esse órgão sensível e vital, exposto a todos".
De acordo com a psicóloga clínica Eliza Guerra
especializada na construção da autoestima e autoconhecimento, é como se nosso
corpo fosse um objeto do olhar e do prazer do outro. ?Isso fez com que as
mulheres não tivessem durante muito tempo autonomia em relação ao próprio
corpo?, explica.
Padrão de beleza e consumo
É comum que as atrizes, modelos e influenciadoras
digitais sejam vistas, muitas vezes, como parâmetro de beleza. Por trás de toda
essa imagem é comum que hajam diferentes produtos, cirurgias, tratamentos
estéticos e atividades físicas que contribuam para que elas alcancem esse ideal
de beleza.
Sendo assim, quando uma mulher se identifica ou
admira uma atriz, modelo ou influenciadora, ela se interessa pelas técnicas e
procedimentos que foram usados pela famosa. Quem nunca copiou o estilo de uma
atriz que admirava ou quis ter o mesmo corte de cabelo de uma cantora?
Com a ascensão das mídias sociais essa visibilidade
passou a ser instantânea e acessível a todo momento. A psicóloga Bruna explica
que toda essa exposição incita a mulher a se recriar de acordo com o modo ou
estilo de vida que lhe é apresentado.
Logo, a ideia que se vende é que é possível ter ou
ao menos se aproximar do padrão estético, contanto que se pague por isso.
Beleza editada
As redes sociais são meios de promover não apenas
nossa autoimagem, mas sim a imagem que queremos passar aos outros. Sendo assim,
é comum usar recursos como filtros, comandos que corrigem imperfeições e até
dão a impressão de que se está maquiada. Dificilmente são publicadas na linha
do tempo imagens que não valorizam a beleza de cada um.
A psicóloga clínica Eliza Guerra explica que é muito
comum as pessoas se esquecerem do uso desses recursos quando veem as fotos de
outras pessoas. Ou então, mesmo que a foto não tenha muitos retoques, pode-se
acreditar que aquela pessoa com a foto perfeita, o corpo malhado e o cabelo
sedoso é assim o tempo todo ou chegou a esse resultado sem nenhum esforço ou
investimento financeiro.
A vida publicada nas redes sociais não
necessariamente condiz com a realidade. Eliza conta que existe o ângulo da
foto, sombra, luz, posição da câmera, maquiagem, filtros e outros recursos que
possibilitam que se consiga imagens dignas de muitos likes e curtidas.
Querer tirar fotos bonitas não tem problema. A
questão é que essa suposta perfeição das redes sociais de certa forma também
aumenta a cobrança entre as mulheres no mundo real. "Gera um senso de
insatisfação constante, pois não condiz com a realidade. É praticamente
impossível atingir o padrão de corpo, imagem e cabelos que vemos nas redes
sociais. A sensação que dá é a de que nunca vamos ser boas os bastante",
explica.
Uma questão que não poupa ninguém
Talvez você pense que essas inseguranças em relação
à própria beleza se manifestem apenas nas mulheres comuns. Na verdade, as
famosas, muitas delas tidas como ícone de beleza, já declararam publicamente
que também têm suas inseguranças.
Celebridades como Beyoncé, Kim Kardashian, Gisele
Bündchen, Bruna Marquezine, Anitta entre outras já disseram que foram afetadas
e se sentiram inseguras em relação à própria aparência. Não é à toa que tantas
delas fazem plásticas, se submetem a tratamentos estéticos e dietas a fim de
conquistar e manter um padrão estético.
Isso significa que nenhuma mulher deveria se
preocupar com a vaidade e abandonar todo e qualquer atitude em relação à
própria aparência? Claro que não. Mas é importante ter em mente que certos
conceitos foram construídos e têm sido sustentados há anos. E que, na tentativa
de pertencer a esses padrões, muitas mulheres têm sua autoestima abalada e sua
autoimagem reduzida a defeitos estéticos. É tempo de apurarmos nossos filtros,
não os de imagens nas redes sociais, mas nossos critérios, e vermos que nem
tudo que é apresentado para nós em relação à beleza é real e nos convém.
Um preço caro às mulheres
Não é exagero dizer que os padrões estéticos podem
ser ferramentas cruéis para as mulheres. Afinal, durante muito tempo fizeram
com que o público feminino acreditasse que era necessário adequar o próprio
corpo a modelos que não levavam em consideração as necessidades da mulher. Ao
mesmo tempo também predominou a ideia de que para que a mulher merecesse ser
amada ela precisaria atender aos requisitos de estética e comportamento de sua
época.
"Em virtude de toda essa ditadura da beleza, a
mulher vivenciou um vazio existencial, perdendo o que lhe é original e vivendo
em torno daquilo que lhe é ditado", lembra Bruna. Segundo ela, isso
resultou em inúmeras mulheres infelizes com o próprio corpo, com o reflexo que
veem no espelho, não reconhecendo quais são suas verdadeiras necessidades e
desejos, chegando ao ponto de não conseguir encontrar nenhuma característica
positiva em si mesma.
E não para por aí, o fato de a mulher não conseguir
ter um corpo dito como ideal, seja por motivos financeiros, genéticos ou
pessoais, pode alcançar níveis extremos, como o desenvolvimento de uma bulimia
ou anorexia.
Uma nova relação consigo mesma
A verdade é que ser mulher nunca foi algo fácil. Junto
com as imposições estéticas há diversos acontecimentos que fizeram e ainda
fazem com que as mulheres fossem menosprezadas na sociedade. A diferença de
salários, a desconfiança dos outros em relação à capacidade de ocupar cargos de
destaque, a ausência de oportunidade, o preconceito do mercado de trabalho com
mulheres que são mães, o racismo que objetifica mulheres negras, indígenas e
orientais e a violência física e psicológica que se manifesta em diferentes
níveis, mas que traz consequências dolorosas.
É tempo de as mulheres olharem para si com mais
compaixão, respeito e consideração por sua individualidade. Esse é o primeiro
passo para construir uma relação saudável com a própria estética. Não tem a ver
com cosméticos, medidas corporais, procedimentos milagrosos e sim com
reconhecer o próprio valor de cara limpa e peito aberto.
Primeiramente é importante lembrar que cada mulher é
única, tem sua própria história, repertório, desejos, genética e valor. Esses e
tantos outros componentes fazem parte de uma mulher. Reduzir o corpo feminino a
medidas e curvas é desumano.
"Somo capazes de deixar de lado as neuroses em
relação ao tipo físico e parar de se comparar com esses padrões. Além disso, é
preciso desenvolver o autoconhecimento e colocar em prática o amor próprio, ao
invés de focar nas críticas e defeitos, buscar dar ênfase às qualidades, e
admirar todas as coisas positivas", diz Bruna.
Um novo olhar para o corpo feminino
Ao conhecer os próprios gostos, valorizar a
ancestralidade, entender o que faz bem e o que não faz, é possível que a mulher
se sinta mais inteira, completa e capaz de tomar decisões que sejam benéficas
para ela. Esses ganhos também podem se refletir na aparência, só que agora a
motivação é outra. O que antes era busca por uma aprovação dos outros, agora é
autocuidado e amor próprio.
"Com isso, no momento que a mulher ver sua
imagem refletida no espelho, ela terá mais facilidade em se perceber, conhecer
os aspectos que lhe fazem diferentes e, ao invés de tentar escondê-los,
valorizá-los. Entender que por mais que os padrões estéticos se modifiquem, ela
pode se sentir bonita em qualquer época", conta Eliza.
É claro que vão haver momentos em que a vaidade e a
autoestima vão ser afetadas. Mulheres são seres humanos e nem todas as
construções sociais são simples de serem derrubadas, mas têm muitas mulheres
trabalhando para isso todos os dias e, por mais que às vezes a gente caia,
ainda somos capazes de ficar de pé.