O que está por trás do plano brasileiro de redução
de açúcar em bebidas e alimentos processados. Ele é realmente efetivo ou mal
trará benefícios?
Doze milhões de toneladas. Esse foi o total de
açúcar consumido pelos brasileiros entre 2013 e 2014. Para ter ideia do tamanho
da gulodice, basta dizer que daria para encher, até a arquibancada superior, 32
estádios do Morumbi, em São Paulo, o segundo maior do Brasil, com capacidade
para 77 mil torcedores. Em um ranking elaborado pela Sucden, multinacional do
ramo açucareiro, nosso país ocupa, hoje, o quarto lugar entre os maiores fãs da
sacarose, o nome técnico do açúcar.
O abuso, como a ciência não cansa de mostrar, eleva
o risco de obesidade e doenças crônicas como diabetes, hipertensão e câncer.
Apenas Índia (26 milhões), União Europeia (18 milhões) e China (16 milhões) são
mais sedentos por doçura que o Brasil.
“Não é proibido consumir açúcar. Pelo contrário. A
Organização Mundial da Saúde (OMS) recomenda a ingestão diária. Afinal, ele é
uma fonte de energia. O problema está no excesso”, avalia Wilson Mello,
presidente do conselho diretor da Associação Brasileira das Indústrias da
Alimentação (Abia).
De fato, a OMS libera um consumo diário, por pessoa,
de 25 gramas, o equivalente a seis colheres de chá. E indica não ultrapassar 50
gramas, ou 12 colheres. Acontece que o brasileiro extrapola. E muito. Engole
três vezes mais: 80 gramas, o correspondente a 18 colheres.
Assim, o total de calorias representadas por esse
ingrediente, que, de acordo com a OMS, não deveria superar 10% por dia, chega a
16,3%. Isso ajuda a explicar por que a incidência de diabetes saltou, só na última
década, 54% entre os homens e 28,5% entre as mulheres.
Por essas e outras, governo e indústria decidiram,
em novembro do ano passado, firmar um pacto: reduzir a dose de açúcar na
fórmula de bebidas e alimentos industrializados. O objetivo é retirar do
mercado, de forma gradual e até 2022, 144 mil toneladas do ingrediente em
algumas categorias — o que daria para forrar 68 piscinas olímpicas.
Comparando aos 12 milhões de toneladas consumidas em
dois anos, parece pouco. A questão é que é difícil mensurar o impacto desses
números. Como a quantidade total de açúcar empregada pela indústria não foi
divulgada, não dá pra calcular exatamente o percentual que vai sumir dos
alimentos — e avaliar quão significativo será o efeito da medida.
O acordo, que é voluntário, contempla 23 categorias
de produtos. Elas podem ser divididas assim: bebidas açucaradas, biscoitos,
bolos e misturas, achocolatados e lácteos.
É curioso que diversos itens, como balas, geleias,
chocolates, sorvetes, gelatinas, refresco em pó, barrinhas e cereais matinais,
ficaram de fora. “Somente as categorias que contribuem majoritariamente para o
abuso de açúcar compuseram o termo de compromisso”, justifica Michele Lessa, coordenadora-geral
de Alimentação e Nutrição do Ministério da Saúde.
Quanto às metas de redução, elas variam de 10,5%
para achocolatados em pó a 62,4% para biscoitos recheados. De resto, a meta é
baixar o teor de açúcar em até 32,4% nos bolos, 33,8% nas bebidas, 46,1% nas
misturas para bolos e 53,9% nos lácteos.
“Em biscoitos, bolos e misturas, o açúcar confere
doçura e interfere na textura, na crocância e no aroma. Além disso, seu custo é
bastante competitivo”, explica Claudio Zanão, presidente executivo da
Associação Brasileira das Indústrias de Biscoitos, Massas Alimentícias e Pães
& Bolos Industrializados (Abimapi). Como o acordo proíbe os fabricantes de
colocarem adoçantes ou gordura em seu lugar, o jeito é testar diferentes
tecnologias, receitas e novos ingredientes.
Confira os detalhes de cada categoria logo abaixo –
e, depois, as ponderações sobre o plano:
Bebidas açucaradas
Meta: até 33,8% menos açúcar
Isso representa no fim de 2020: ter 11 gramas de
açúcar em 100 mililitros de produto
No fim de 2022: 10,6 gramas de açúcar em 100
mililitros
Uma latinha do refrigerante à base de cola mais
vendido do mercado já apresenta 10,5 gramas de açúcar em 100 mililitros. Logo,
escapa, por 0,1 grama, da meta estabelecida para refrigerantes em 2022, que é
de 10,6 gramas. Das 207 bebidas açucaradas incluídas no acordo, 113 (55%) terão
que reduzir o teor do ingrediente em sua fórmula. Ou seja, muito produto já
está dentro dos parâmetros.
Achocolatados em pó
Meta: até 10,5% menos açúcar
Isso representa no fim de 2020: 90,3 gramas de
açúcar em 100 gramas
No fim de 2022: 85 gramas de açúcar em 100 gramas
De todas as categorias, é a que apresenta o menor
índice de redução. Alexandre Jobim, presidente da Associação Brasileira das
Indústrias de Refrigerantes e de Bebidas Não Alcoólicas, explica que, devido ao
consumo reduzido, os achocolatados líquidos não entraram no combo — só os em pó
e similares de outros sabores. Detalhe: o produto líder do mercado já está
dentro da meta, com 75 gramas de açúcar em 100 gramas.
Biscoitos
Meta: até 62,4% menos açúcar
Isso representa no fim de 2020: 36,4 gramas de
açúcar em 100 gramas
No fim de 2022: não divulgado
A categoria inclui rosquinhas e biscoitos com e sem
recheio. O líder entre os recheados possui 36,3 gramas de açúcar por 100
gramas. Então, não precisará rever a fórmula até 2020. Claudio Zanão,
presidente da Abimapi, avisa que os fabricantes já estão testando alternativas
para se adequar ao trato. “A combinação de sabor, textura, crocância e custo
oferecida pelo açúcar não é facilmente encontrada em outros produtos”, informa.
Iogurtes e leites fermentados
Meta: até 53,9% menos açúcar
Isso representa no fim de 2020: 14,5 gramas de
açúcar em 100 gramas
No fim de 2022: 12,8 gramas de açúcar em 100 gramas
Segundo Cristina Mosquim, consultora de assuntos
regulatórios da Viva Lácteos, há itens que já sofreram redução de 12% ou quase
não levam açúcar. Usar mais leite é uma das soluções. O líder dentro de petit
suisse tem, hoje, 12,2 gramas do ingrediente. O valor deverá ser de 13,9 gramas
para essa categoria em 2022. Nada muda nesse caso, portanto.
Bolos prontos
Meta: até 32,4% menos açúcar
Isso representa no fim de 2020: 31,2 gramas de
açúcar em 100 gramas
No fim de 2022: 29,5 gramas de açúcar em 100 gramas
Falamos de todas as versões: com e sem recheio ou
cobertura. “Se a meta de redução fosse mais ambiciosa, não teríamos como
garantir que sabor, textura, cor e outras características não seriam
alterados”, admite Zanão, da Abimapi, uma das quatro associações a selarem o
acordo. Juntas, representam 68 empresas, que respondem por 87% do mercado.
Misturas para bolos
Meta: até 46,1% menos açúcar
Isso representa no fim de 2020: 58,7 gramas de
açúcar em 100 gramas
No fim de 2022: 57,9 gramas de açúcar em 100 gramas
Podem ser aeradas ou cremosas e permitem que o
consumidor elabore as mais variadas receitas a partir delas. Assim como as
categorias de bolos e biscoitos, a de misturas está sob o guarda-chuva da
Abimapi. “Pretendemos, até 2022, ajustar, no mínimo, 50% de todos esses
produtos”, calcula Zanão, presidente da entidade.
Elogios, críticas e ponderação ao plano de redução
do açúcar
De maneira geral, entidades como a Sociedade
Brasileira de Endocrinologia e Metabologia (Sbem) e a Associação Brasileira
para o Estudo da Obesidade e da Síndrome Metabólica (Abeso) encaram a
iniciativa com bons olhos. Mesmo assim, sugerem ajustes.
Para o endocrinologista Fábio Trujilho,
vice-presidente do Departamento de Obesidade da Sbem, falta discutir restrições
de publicidade de alimentos para crianças, por exemplo. “É essencial ir muito
além desse acordo e adotar medidas que conscientizem a população dos riscos do
consumo exagerado de açúcar”, destaca.
Já a endocrinologista Maria Edna de Melo, presidente
da Abeso, reivindica uma rotulagem nutricional adequada com a informação clara
e compreensível sobre a presença de açúcar no produto. “Na hora da compra, o
consumidor precisa saber o que está levando para casa. Por essa razão, ter um sinal
de alerta seria muito eficiente”, afirma.
Ela se refere ao modelo conhecido como “triângulo
preto”, que propõe um aviso frontal sobre o alto teor de ingredientes que, se
consumidos demais, fazem mal à saúde. É o caso de sódio, gordura e açúcar. O
modelo, em estudo pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), já
foi adotado em países como Chile, Uruguai e Canadá, entre outros.
Na opinião da nutricionista Laís Amaral, do
Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor (Idec), também é necessário coibir
a venda de produtos desbalanceados nas cantinas escolares. “Devemos facilitar
as escolhas saudáveis e dificultar as não saudáveis”, resume.
As críticas ao pacto não param por aí. “Acordos
voluntários são pouco eficazes porque as metas são baseadas no teor máximo de
açúcar em cada categoria de alimento. Isso significa que haverá uma diminuição
apenas nos itens com valores realmente excessivos”, explica Laís. “Na prática,
é apenas um controle de danos com metas pouco ambiciosas”. Ela se alongou sobre
o assunto em uma coluna para o nosso site, que você pode ler clicando aqui.
O acordo engloba 2 397 produtos — na conta da
indústria, são 1 787 — de 68 empresas. Desse total, somente 1 147 (47,9%) de
fato terão que adequar seus índices de sacarose. Os 1 250 restantes (52,1%) já
estão dentro ou até mesmo abaixo das metas estabelecidas.
“Se os limites fossem mais bruscos ou o acordo
englobasse uma quantidade maior de alimentos, o consumidor poderia deixar de
levar para casa seu produto favorito e migrar para outro, com mais açúcar.
Queremos dar tempo para as pessoas se adaptarem ao sabor”, defende Mello.
O presidente do conselho da Abia garante que o
trabalho não termina em 2022. Daqui a quatro anos, governo e indústria
pretendem se reunir para firmar outro pacto e estipular novas metas de redução.
Segundo o Ministério da Saúde, o açúcar presente nos
alimentos industrializados responde por 36% do total consumido no Brasil. Os
outros 64% seriam adicionados pelo próprio indivíduo ao café, aos sucos e às
demais receitas. A indústria apresenta números diferentes: 19,2% do açúcar
degustado seria incorporado pelas empresas, enquanto 80,8% viriam do açucareiro
de casa.
Divergências à parte, não dá para negar que o
paladar brasileiro precisa de um treino. “Até por uma herança cultural,
gostamos muito de doces. Nosso paladar é semelhante ao do português”, compara
Olga Amâncio, presidente da Sociedade Brasileira de Alimentação e Nutrição
(Sban). “Até pouco tempo atrás, todo mundo adoçava suco de fruta. Hoje em dia, nem
tanto. É preciso ensinar à população que muitos alimentos já são doces por
natureza”, ressalta a nutricionista.
O educador físico Antonio Lancha Jr., professor da
Escola de Educação Física e Esporte da Universidade de São Paulo e autor do
livro O Fim das Dietas (Editora Abril), endossa as palavras de Olga. “Tem gente
que coloca açúcar até em achocolatados”, conta.
E ele traça outra reflexão: hábitos alimentares não
são mudados por decreto. “Por que as pessoas escovam os dentes todos os dias?
Porque isso foi estimulado na infância”, exemplifica. “Mudança de comportamento
passa por uma questão educacional. Muitas vezes, orientar uma criança é capaz
de promover uma alteração no padrão familiar”, completa.
Além de maneirar na quantidade de açúcar à mesa,
especialistas recomendam prudência na hora de substituir o ingrediente por
adoçantes. O ideal é dar preferência a alimentos naturais ou minimamente
processados.
História que se repete?
Não é a primeira vez que governo e indústria unem
forças para estipular metas de redução de um ingrediente de produtos
alimentícios. O primeiro documento foi assinado em 2007. Na ocasião, a
indústria conseguiu baixar em 94,6% a concentração de gordura trans em
alimentos. Com isso, 310 mil toneladas saíram das prateleiras entre 2008 e
2010.
Em 2011, o foco foi o sódio. Desde então,
desapareceram do mercado 17,2 mil toneladas do mineral cujo excesso leva à
hipertensão. O objetivo é chegar a 28,5 mil toneladas em 2020. Só que esse
combinado também recebeu críticas.
O cientista político Marcello Fragano Baird, autor
do relatório Redução de Sódio em Alimentos — Uma Análise dos Acordos
Voluntários no Brasil, afirma que o trato foi muito tímido porque suas metas
tiveram como base a média do mercado. “Isso significa que praticamente metade
dos produtos já estava dentro dos limites. É um passo importante, mas seria
possível ter sido muito mais ambicioso”, avalia.
Para o Ministério da Saúde, o acordo firmado em 2011
para redução de sódio pode ser considerado bem-sucedido. Só no primeiro biênio
(2011-2013), 90% dos produtos bateram a meta estipulada, com uma redução média
entre 5 e 21%.
Mas um estudo conduzido pela Universidade Federal
Fluminense não enxergou motivo para tanto otimismo. Seus autores revelaram uma
queda média de 1,5% no consumo de sódio.
Ou seja, é como se a ingestão tivesse passado de 3
163 miligramas diários para 3 116, valor ainda bem acima do limite aconselhado
pela OMS, que é de 2 mil miligramas diários.
De volta ao pacto do açúcar – e ao fato de ser
voluntário
Mais um ponto que incomoda os experts é o fato de o
tratado do açúcar ser voluntário. “Quem estabelece os valores das metas e o
tempo para cumpri-las é a própria indústria. Não há previsão de fiscalização,
monitoramento ou punição para aqueles que não cumprirem o acordo”, observa
Laís.
Mas Michele, do Ministério da Saúde, assegura que a
Anvisa fará uma análise laboratorial para verificar a quantidade de sacarose
nos produtos a cada dois anos. As empresas que não obedecerem o pacto serão
notificadas e o Ministério cobrará providências.
Porém, como a adesão é opcional, realmente não
ocorrerão ações punitivas ou sanções econômicas. Só que Mello acredita que
medidas do tipo nem seriam necessárias. “Ninguém quer ser o patinho feio da
história”, diz.
Para Baird, o ideal seria que o governo determinasse
a redução obrigatória e as empresas fossem penalizadas caso não atingissem as
metas. É o que já acontece em países como Argentina e Portugal. “Esse modelo
tende a ser mais efetivo”, afirma.
Na falta de tal controle, cabe à gente ser mais
vigilante — não só em relação aos produtos do mercado mas ao próprio paladar.
Açúcar, um inimigo oculto
Quantas vezes você viu a palavra “açúcar” no rótulo
dos industrializados? Não é tão comum, né?
Isso porque os fabricantes não são obrigados a
informar seu teor na tabela nutricional. Na maioria dos casos, ele surge como
“carboidrato”.
Mas quanto dos carboidratos é açúcar e quanto são
outros tipos, como fibras ou amido? Não há como saber. Para complicar, na lista
de ingredientes a indústria prefere usar alguns dos muitos codinomes do açúcar,
como mel, glicose, frutose, sacarose, xarope de malte e até maltodextrina.
Impossível decorar tanto apelido. Talvez uma
atualização na rotulagem ajude nesse sentido.